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dezembro 31, 2014

ESPERANÇA




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
vive uma louca chamada Esperança
e ela pensa que quando todas as sirenas
todas as buzinas
todos os reco-recos tocarem,
atira-se 
e
- ó delicioso vôo
será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá, então,
(é preciso explicar-lhes tudo de novo!)
ela lhes dirá, bem devagarinho, para que não esqueçam nunca:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...


___Mario Quintana,
 in Baú do Espantos pg 77

outubro 31, 2014

PARA OS LIVROS CUJO PERFUME



Para os livros, cujo perfume
de campo e verniz fascinava
meus olhos e meu pensamento,
não tenho tempo.

Para a flor, o linho, a ramagem,
a cor, que me arrastavam como
por um bosque múrmuro e denso,
não tenho tempo.

Nem para o mar, nem para as nuvens,
nem para a estrela que adorava
não tenho, não tenho, não tenho
não tenho tempo.

Canta o pássaro inútil ritmo,
os homens passam como sombras,
e o mundo é um largo e doido vento.
Não tenho tempo.

Longe, sozinha, arrebatada,
entro no circulo secreto
e a mim mesma não me pertenço.
Não tenho tempo.

Oh, tantas coisas, tantas coisas
que a alma servira com delicia...
(São nebulosas de silencio...)
Não tenho tempo.

Lagrimas detidas – meus olhos.
Sofro, porem já não batalho
entre saudade e esquecimento.
Não tenho tempo.

Aonde me levam? Que destino
governa a delirante vida?
Nem hei de morrer como penso.
Não tenho tempo.

Tão longe esforço, e tão penoso
- e agora fechado o horizonte.
Ó vida, inefável momento,
- não tenho tempo... 

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)



VINDE,Ó ANJOS, COM AS VOSSAS ESPADAS




Vinde, ó anjos, com as vossas espadas,
as vossas espadas e as vossas balanças,
para pesar estas vidas pesadas
de tristes sonhos, mas não de esperanças.

Vinde com as vossas estrelas e flores
enfrentar animais flamejantes.
Ai! que campinas só de desamores,
que universo de só desamantes!

Cecília Meireles
In Poemas III



outubro 19, 2014

O Antinarciso



Esse estranho que mora no espelho
(e é tão mais velho do que eu)
olha-me de um jeito de quem
procura adivinhar quem sou.

Mario Quintana,
in Caderno H


outubro 04, 2014

A ARTE DE VIVER



A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!


Mario Quintana,
in Velório sem defunto,

outubro 03, 2014

LUAR PÓSTUMO



Numa noite de lua escreverei palavras,
simples palavras tão certas
que hão de voar para longe, com asas súbitas,
e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.

O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,
nascerá de novo no mundo.
Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados,
livre de pálpebras, e num país sem muros.

Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,
é doce caminhar, viver o que se vive.
Porque a noite é tão grande... Ah, quem faz tanta noite?
E estar próximo é tão impossível!


Cecília Meireles
In: Poesia Completa




TENTATIVA



Andei pelo mundo no meio dos homens: 
uns compravam jóias, uns compravam pão. 
Não houve mercado nem mercadoria 
que seduzisse a minha vaga mão. 

Calado, Calado, me diga, Calado 
por onde se encontra minha sedução. 

Alguns, sorririam, muitos, soluçaram, 
uns, porque tiveram, outros, porque não. 
Calado, Calado, eu, que não quis nada, 
porque ando com pena no meu coração? 

Se não vou ser santa, Calado, Calado, 
os sonhos de todos porque não me dão? 

Calado, Calado, perderam meus dias? 
ou gastei-os todos, só por distração? 
Não sou dos que levam: sou coisa levada... 
E nem sei daqueles que me levarão... 

Calado, me diga se devo ir-me embora, 
para que outro mundo e em que embarcação! 

CECíLIA MEIRELES 
In Viagem, 1939


outubro 01, 2014

Os rios



Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente,

Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.

Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,

Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...

Olavo Bilac
In ‘Tarde’ (1919)



Em todos os jardins



Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

setembro 29, 2014

SE ÀS VEZES DIGO QUE AS FLORES SORRIEM...




Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem. 


Alberto Caeiro
Fernando Pessoa (1888-1935)


Agradeço sua visita. 
Volte sempre e comente!

INVENÇÃO



Invento uma lua cheia.
Clareia a noite em mim.

Helena Kolody
in "Viagem no Espelho"

setembro 27, 2014

POR AÍ ALÉM



Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.


Carlos Drummond de Andrade
in ‘Poesia Errante ‘

setembro 26, 2014

Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.


Miguel Torga
In ‘Poesia Completa’



Demissão



Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.

José Saramago,
in "Os Poemas Possíveis" 

 

abril 07, 2014

ESTOU SEMPRE EM VIAGEM



Estou sempre em viagem.
O mundo é a paisagem
que me atinge de passagem

Helena Kolody
in "Viagem Submersa"





COLHENDO



Quando não temos um motivo para sorrir
O melhor é colher flores.
Somente elas entendem..
O porque do silêncio
Abrace sua dor com sabedoria,
colhendo flores no campo..

Glória Dantas

fevereiro 21, 2014

XII




Quero viver nesta terra como a árvore
Frutificar a árvore como um tempo.
Purificar-me no tempo como o girassol
que do tempo tem a haste e o farol.

Quero a essência da essência,
a que fixa ao forte
para que o forte sobreviva.

Quero brincar neste beco como a roda
que se caminha
e se repete.

E repetindo é roda
e barca ao mesmo tempo
e coração que aguarda
e sofre morrer docemente.

Quero serenar a ternura
e distribuir o amor demasiado
em destino para toda multidão.

Lindolf Bell
in Ciclos

ANDORINHAS ESCREVEM NO AR




Guardo da infância
andorinhas escrevendo
no ar


Hoje
recolho ainda
andorinhas escrevendo
no ar


Andorinhas
não publicam
nem declamam
o que escrevem
no ar


Entendi a escrita minha
ao entender a escrita da andorinha



Lindolf Bell
In: O Código das Águas