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junho 06, 2012

AS VIDAS QUE EU SONHEI



Fico soturno a olhar para o mar
e a pensar num rei a traduzir Shakespeare
numa varanda embriagada pelo azul.
Deixei de ter tempo para espiritualidades,
para o engodo das tremendas interrogações,
para a altivez das perguntas sem resposta.
Fiquei temporariamente domesticado
para uma outra escrita, por um discurso
que não consente divagação ou fuga.
Normalizei-me, e contudo gosto de ver
a mão hesitante e trémula
à beira da consumação do poema
quando a maré assalta a muralha e traz,
misturados com a espuma,
os destroços das vidas que eu sonhei,
das vidas que, se calhar, eu já vivi.


José Jorge Letria

QUEM DO AMOR SE APARTA





Quem do amor se aparta não tardará
a saborear o fruto inclemente da amargura.
Medirá as rugas e os passos
na solidão dos quartos e dos livros,
guardará as folhas das árvores
que crescem nas fábulas e nos sonhos.
Provará um gosto acre, um delírio vagaroso,
um desejo aflitivo de escapar
ao cativeiro da sombra em que se move.
Experimentará a secura da carne,
a magreza do corpo sobre as dunas,
a ansiedade tremenda de estar fora de si
onde quer que esteja, para onde quer que fuja.
A loucura, dirá, cinge com seus dedos
a garganta ferida pelo álcool.
Descerá ao inferno da noite minguada
pela avareza da luz sobre as veredas.

Quem do amor se aparta há-de perder-se
em todos os sentidos menos naquele
em que a campânula dos ventos se enche
com o eco do nome amado, impronunciável.

José Jorge Letria
In Percurso do Tempo